Em 1962 Isaura Cardoso tem 52 anos, já não é uma mulher nova e tem uma vida cheia de escolhos. Sente-se mal tratada pelo destino e pelo cunhado que lhes ficou com tudo. Está a mudar de casa, saiu do que era seu por direito, e agora, sentada na arca de madeira e chapa, descansa dos trabalhos de mudanças e revê tudo o que passou. Foi tudo tão depressa!
A poucos metros dali, no terreno que partilha com o irmão Jaime, e que somado aos quinhentos escudos é tudo o que recebeu dos pais, a filha vai fazer uma casa. O genro não poderá ajudar muito, trabalha para o tio que enriquece de dia para dia, recebe mil escudos e nem descontos para a caixa faz. A filha falou com o pai – Isaura é mãe solteira e não lhe fala desde que a Arminda também teve um filho dele, também solteira, pouco dias depois de Maria Emília ter vindo ao mundo. O Zé Maria mandou a filha andar com a casa que a pagava, ela assim está a fazer, já lá está um monte de pedra.
Sentada na arca a rever os dias de que se lembra, pousa os olhos desfocados numa zona qualquer da memória, traço que a filha herdou, e mesmo assim se apercebe do mau estado do soalho. As tábuas são antigas, de castanho, e são largas e de boa bitola, mas a idade é muita. Aqui e ali há frinchas abertas por onde se vê para a casa da lenha. A cara da mãezinha vem-lhe todos os dias à cabeça, a do paizinho com mais alguma dificuldade que tinha ido há mais tempo – meus bisavós, Maria e Valentim, partiram antes que minha avó Isaura e outros dos dez irmãos tivessem a maioridade; foi feito inventário e entregue tudo ao cuidado do Abílio Barros, marido da Palmira, uma das mais velhas.
Em Freamunde, a Rua do Comércio no sentido como quem vai para Lousada, do lado esquerdo era tudo propriedades dos Cardosos, o que não era dos Cardosos era dos Britos. Do outro lado era quase tudo dos Oliveiras. O edifício mais robusto era justamente a pensão Cardoso, casa paterna onde nasceu minha avó Isaura, e onde nasceu também minha mãe, de pai conhecido mas ausente, sendo já na altura a casa do tio Barros; a casa, as quintas, as vinhas… Do que ficou arrolado aos cuidados do enorme Abílio Barros, ele só largou meia dúzia de campos – que entregou um a cada dois herdeiros juntamente com uns míseros “cobres”. Muitos anos se tinham passado desde a constituição do inventário, e entretanto, o Barros acostumara-se à propriedade da fortuna, os legítimos herdeiros acostumaram-se, na falta das figuras paternais, às paternalidades do Barros, tudo se passou no remanso do pacífico e vasto lar. No momento da partilha tudo o que viesse era bom, só mais à frente amadureceram as consciências e os olhos viram que mal partido estava o bolo – tarde|
A casa do Lugar dos Matos, arrendaram-na por cento e cinquenta escudos ao sobrinho, Toninho Barros, que a herdou dos pais. Isaura não se sente mal ali; a casa é boa e bem que poderia ter sido dela, ou não, já não importava. Mais importante é que a família se dava toda bem e as coisas estavam resolvidas melhor ou pior na cabeça de cada um. A casa em construção avançaria rapidamente porque o dinheiro estava garantido e o Pinhão era um mestre d’obras sério e competente.
A Isaurinha Cardosa foi sempre muito respeitada por toda a vila. Ela merecia-o e nunca deixou de fazer por isso. O aspecto e a limpeza da casa, tinha-os muito em conta; aquele soalho merecia uma reparação que se impunha antes da chegada da filha, do genro e das minhas duas irmãs – eu nasceria mais tarde. Acendeu o fogão de lenha, pôs uma panela de água a aquecer, onde foi deitando papel de jornal rasgado em bocadinhos muito pequenos. Cozeu assim em lume brando um paparote denso e acinzentado a que juntou alguma goma-arábica, tinha-a sempre para fazer cola de papel; puxou a panela para o lado, onde a temperatura não era tão alta e deixou-a com a tampa semiaberta; entretanto ajoelhou-se e começou a raspar todo o assoalhado com palha d’aço. Este trabalho de limpeza das madeiras deu-lhe para vários dias, durante os quais manteve a panela da pasta de papel a um canto com a tampa fechada. Varrido o chão de toda a poeira levantada, passou-o a pano com água morna. Por fim, com a ajuda de uma faca velha usada a modos de espátula, tapou todas as frinchas com a pasta de papel, deixou secar durante toda uma semana em que se ocupou do exterior e de outros pormenores e depois deu duas generosas camadas de cera
Com os movimento circulares repetitivos, ora de um braço, ora de outro, progredindo de gatas, muito lentamente, a dar polimento ao chão encerado daquela casa arrendada, Isaura Cardoso fez o último ritual de luto pelos pais e pela casa onde nascera e de onde nunca tinha saído antes. A antiga pensão do tempo dos pais seria um lugar no passado. A figura de mãe solteira que tinha de si própria, deixá-la-ia nessa casa de seus pais, no passado também. Isaurinha seria desde então avó; regressaria da missa da manhã, todos os dias, para uma casa sem fantasmas.
Foi nessa casa arrendada, que tinha do outro lado da estrada - de terra na altura – um largo com uma nora ao meio, que eu nasci em Novembro de 1964. Fui fazer o primeiro aniversário à casa construída no campo da avó Isaura; ainda lá está, mas já só lá habita o meu pai. Passou o tempo que passou, e agora, quando olho para trás já misturo as memórias do que vivi com as que me contaram e com outras coisas que não sei o que são.
A todo o momento poderá acontecer algo. O mais provável é eu ser apanhado com um caderno e uma caneta na mão. Espero bem!
JMP