Da esq. para a dir.:
Ricardo Jorge Leão Cardoso de Barros - Primo
Paulo Queiróz - Amigo
(eu)
José Armando Oliveira Cardoso Pinto - Primo
Desde Dezembro, antes do Natal que não faço nada. Piorei da minha doença, tive de ficar de cama durante um mês, numa inactividade completa. Levantei-me enfim, mas por alguns dias apenas, porque o frio me obrigou de novo a ficar na cama.
Entretanto, pelo Adalberto, mandei comprar folhas soltas para escrever e para desenho. As folhas chegaram há dias. Eu estava a pé nessa altura… E logo me assaltou uma fúria imensa pelo desenho. Comecei, fiz alguma coisa mas tive de parar.
Como eu desejaria nesta altura uma saúde de ferro só para poder desenhar à minha vontade, horas e horas sem descanso, até á exaustão! Em vez disso, porém, estou na cama e todo o meu labor se limita a desenhar no vácuo pelo pensamento que não pára, numa sucessão de imagens por vezes tão claras, tão nítidas, que é impossível que alguma coisa não fique em mim para dar fruto num futuro melhor.
Oh! O que eu sonho de desenhos e de pinturas! E de que forma me ultrapasso e supero neste desenhar e pintar mental! É uma doidice deixar-me arrastar assim, consentir que de tal forma me empolgue a imagem aliada à ideia do que farei … Pois se eu sei que não sei nada! Se mais do que isso eu sei que não posso nada! Como suster, porém, a torrente que brota, que esguicha do meu cérebro livre de distracções por esta quietude de corpo em que estou?
Em certos momentos, convicto da impossível altura a que pelo pensamento me guindei, fecho as comportas, ponho um tampão neste sonhar louco… Mas de que vale? Daí a nada tudo salta em estilhar; uma nova ideia entra a germinar, a roer… E não sou mais eu quem pensa: é alguém no ar, seguindo a ideia, que se dilata, cresce, atinge proporções descomunais, qual bola de neve rolando do cimo do monte. Entretanto, eu sei, bola de neve ou ideia terão fim idêntico: ou pelo caminho as despedaça um obstáculo imprevisto, ou acabarão seus dias no fundo do precipício onde as forças da natureza ou a realidade da vidaas levou…
Sei isto e no entanto continuo a pensar coisas fantásticas, todo nas nuvens, feliz, de uma felicidade de criança grande, para quem o desmoronar de todo um sonho não é mal maior nem desgraça tão forte que lhe roube a faculdade de pensar, de fantasiar de novo, e sempre mais alto.
Freamunde, 12 de Fevereiro de 1960
João Fernando Correia de Moura (26/0871931 – 18/06/1964)
Autor Freamundense
Prefácio de: José Carlos de Vasconcelos
Edição - Câmara Municipal de Paços de Ferreira
Freamunde, Novembro de 2009
Tear de lançadeira, com braços, de John Kay (c. 1704 - 1780)
Pinto de Moura & Cª Lda chegou a ter ao serviço mais de 360 teares deste tipo.
Estas máquinas produziram, ali, até meados do ano 2000
O rapa jogava-se a pinhões por alturas do Natal, geralmente ao serão, com uma braseira por perto e o cão aos pés.
O pequeno pião manufacturado na oficina do bisavô, terá sido obra de um dos tios mais novos, a explorar a habilidade das pequenas mãos nas pesadas máquinas movidas pelo veio comum que girava continuamente, de uma ponta à outra da oficina. Desse veio provido de polias de diferentes tamanhos, pendiam correias de couro em diferentes estados de desgaste; umas escuras e brilhantes a denunciar as tensões e os atritos suportados, outras ainda com o pelo e com a cor do animal. A polia maior estava na vertical do esmeril – um eixo apoiado em duas grandes chumaceiras com uma pedra de cada lado, uma fina e outra mais grossa. Sobre o torno, a grande e larga roda de quatro raios, presa ao veio por dois parafusos, um de cabeça quadrada e outro de cabeça sextavada, brilhava polida em toda a excepcional largura, que havia de dar para qualquer das três polias – logo três velocidades – que o torno tinha.
Imagino todos esses movimentos transmitidos ao pequeno cilindro de latão, a deixar-se burilar, fortemente mordido pelas maxilas da enorme bucha, feita para agarrar desde a fina vareta ao grosso toro de metal.
Quando faço girar o pequeno pião revejo no movimento o acto que o criou, é como se estivesse a devolver a vida ao longo e velho veio primordial, que tudo movia, que tudo deu, impelido numa ponta, e disponível a todo o comprimento.
Não foi feito todo de uma vez, com toda a certeza. O bocadinho de metal foi sendo desgastado e acrescentado de cada uma das suas feições em muitos episódios, em tempos roubados à montagem de um pulverizador, à soldadura do corpo interno de um autoclave de esterilização, ao polimento de um passador…, entre os quais ficava a aguardar atenções juntamente com os finos bicos dos aspersores, irmãos nos cuidados requeridos.
Foi feito girar para aferir o equilíbrio e, para concluir, foram-lhe gravadas as letras R, T, D, P. Logo de seguida rodopiou, pela primeira vez inteiro e completo, até que se horizontalizou, imobilizou e disse:
– Deixa!
Tenho ainda um outro pião que encontrei eu, muitos anos depois de ter sido torneado e fresado, displicentemente adormecido entre bicos de aspersor, num pequeno tabuleiro de madeira, tudo coberto por limalha fina, fuligem do forno de fundição arrefecido há décadas, e pó. Esse pião não rodopia. Dado o impulso próprio, capota desordenado imobilizando-se rapidamente sobre um dos lados que nem sei se é sempre o mesmo ou não. Ele não possui letras gravadas, nem chega a ser um pião – não rodopia – mas também não engana! Dizer que é um pião, é transliterar do passado longínquo a linguagem arranhada pela fuligem do coque, diluída no crepitar do fogo e estalidos de choque térmico, para a vontade de falar sobre o que incorporo do movimento daquele veio e do equilíbrio do meu rapa.
JMP